quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um ensaio sobre o sujeito professor no limiar do século XXI: transgressão e ruptura






Geane Valesca da Cunha Klein*

Um grande desafio da educação contemporânea é formar pessoas aptas a resolver situações-problema, capazes de buscar soluções além dos limites do pensamento comum, rigidamente constituído. Embora esse ideal seja vislumbrado nas falas proferidas nas diversas instâncias educacionais, está ainda distante da efetivação completa, pois a passagem do discurso à prática exige um movimento de desordem e desestabilização, ou seja, de revisão de conceitos, noções, normas, atitudes.
Esse movimento, sobretudo, prescinde ocorrer entre educadores, dos quais se espera a não esquiva diante de conflitos ou situações-problemas. E isso sugere que o professor em sua rotina deva ser um pesquisador contínuo, com senso de investigação e postura problematizadora. A imagem de professor que repassa teorias ou atividades e espera o retorno destas para convertê-las em notas ou conceitos, é incompatível com a idéia de educação almejada como ideal. Do professor de hoje espera-se mais do que domínio teórico, apropriação de metodologias ou técnicas de ensino: espera-se atitude de pesquisa e investigação.
Isso faz pensar que o professor deve refazer continuamente a si e as “suas” práticas e teorias para que assim possa desvencilhar-se de preconceitos ou clausuras que o impedem de analisar mais largamente as diversas situações com as quais se defronta na sua profissão ou fora dela. Entretanto, essa refacção envolve muito mais do que a sistematização de algumas idéias ou princípios, exige a alteração nas práticas diárias e a recolocação do professor num papel ativo de produção de conhecimento. Tal papel é quase óbvio, mas distante do real em que a atitude freqüente é de não exposição: poucos falam em público (exceto em suas salas de aula), menos ainda escrevem e raros são os que se aventuram a seguir por “mares nunca dantes navegados”, lembrando Luís de Camões[1].
Entretanto, Fernando Pessoa não cansa de alertar: “Navegar é preciso, viver não é preciso”[2]; a falta de riscos ou desafios transforma a vida num marasmo tão fatigante que o sentido dela se esvai: estar vivo é não ter precisão; não ter tudo programado, calculado. Viver é encantar-se na surpresa... Talvez por isso a educação formal tenha se transformado num processo exaustivo, extenuante e sem sentido. Falta o sabor do risco, a sensação de medo diante do desconhecido, o gosto da adrenalina pela conquista. Seguem-se repetidamente os mesmos caminhos, lêem-se os mesmos livros, reproduzem-se as mesmas teorias. E diante do desconhecido, ao invés de ousar, é preferível esquivar-se, recusar, não envolver-se - até porque seguir as mesmas fórmulas, receitas ou técnicas é mais fácil e não dispende tempo.
Entretanto, evitando o conflito, a dúvida, a dor, o professor também não descobre o prazer da descoberta do novo, do diferente. E “como pode um professor reprimido, o que não diferencia desejo de instinto, reconhecer-se num texto?”[3], e se não se reconhece num texto, como pode problematizar, discutir, conhecer?
Na agitação dos tempos modernos, do mundo globalizado, das jornadas triplas pra completar orçamento, dos relacionamentos virtuais e das teorias desconexas com a prática, o professor esqueceu a paixão, o prazer, a sensação. Não se “perdem” mais deliciosas manhãs, tardes ou noites dialogando com autores, construindo possibilidades, sentindo desejos com a leitura, a descoberta, o conhecimento, a dúvida.  E não fazendo mais isso, os professores também esqueceram que
É nas experiências do amor que se faz a invenção do outro e se vive a narrativa íntima da subjetividade. O corpo sem coragem para amar é o corpo sem vontade de ler. Se o flâneur baudelaireano percorria as ruas com inquietação inusitada, atraído e assustado com a fugacidade do que via, o professor massacrado, cansado, endividado, não mais sente ansiedade, apenas enfado.[4]
Cheios de certezas e crentes de possuir respostas para todas as perguntas importantes, o conhecimento é negado porque apenas reproduzido, nunca construído. E a frustração aumenta porque é sabido que deveria ser diferente, que o “fingir” ensinar só aumenta o vazio e a sensação de não saber para onde ir. E como o fabuloso Gato de Cheshire, criado por Lewis Carrol[5], muito bem adverte “se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve”. Se o professor não sabe o que fazer, qualquer método é possível, qualquer teoria verdadeira, qualquer aula é sem sentido...
Acorrentado por seus próprios fantasmas, o professor também sofre pela submissão a modelos institucionais, conteúdos programáticos, burocracias que tornam a carga ainda mais pesada. Nessa engrenagem inevitavelmente acaba-se por negligenciar que
a situação do ensino constrói não apenas o aluno, mas também o professor, pois (...) ele também é um sujeito em construção no processo. A reprodução da estrutura do ensino na sala de aula é um ponto importante a se considerar na elaboração dessa noção. De modo geral, podemos supor que é difícil para o professor ver-se como agente transformador da estrutura social, pois ele sequer consegue influenciar a estrutura à qual está submetido. Se o próprio professor não é autônomo, sendo restringido pelo papel que é forçado a desempenhar pelas instâncias superiores, então seria, para ele, difícil agir no sentido de dar autonomia ao aluno. [6]
A situação atual da educação representa exatamente o inverso do que seria pretendido e desejável para a sociedade contemporânea. Necessita-se a formação de sujeitos críticos e participativos na sociedade, mas amarram-se as mãos daqueles que poderiam fazer isso acontecer. Entretanto, não se formarão alunos pesquisadores se os professores não tiverem atitude de pesquisa, nem leitores ou escritores sem que a leitura e a escrita sejam práticas constantes e necessárias na vida de ambos.
Nesse sentido, em se tratando de práticas de ensino e aprendizagem, o documento[7] apresentado pela Unesco em 1998 é referência impreterível. Nele estão pontuados os quatro pilares da educação para o século XXI e que correspondem ao "aprender a conhecer", "aprender a fazer", "aprender a viver" e ao "aprender a ser". O documento corresponde a uma proposta de abordagem do conhecimento fundada numa perspectiva de educação integral e, em essência, transdisciplinar (capaz de discutir o que une as disciplinas, para poder ver o que está para além delas), proposta essa há mais de 10 anos idealizada, mas muito distante de realização efetiva.
Diante dessa discrepância, pode-se questionar: por que isso ocorre? A resposta está na evidência de que para chegar próximo do proposto no documento, em primeiro lugar o próprio professor deveria conhecer, fazer, viver e ser. Nada impossível, mas a preocupação exclusiva com o conhecimento (normalmente hermético, alheio a outras possibilidades, distante dos outros pilares) ainda é o fio condutor do processo de ensino. Conseqüência direta dessa postura: como o professor não experimenta ou vivencia, e muitas vezes esquece (ou é impedido) de ser, acaba inibindo também o afloramento dessas potencialidades em seus educandos.
Esses bloqueios afetam as práticas aparentemente menos importantes no processo de ensino-aprendizagem. Um caso ocorrido há alguns anos numa reunião pedagógica (habitualmente realizada em uma escola de ensino fundamental e médio) mostra esse distanciamento do professor com os quatro pilares da educação em sua prática cotidiana. O relato é simples e a experiência também (e a voz de Clarice Lispector ressoa nesse momento, indagando: “Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos?”[8]), mas acredita-se servir bem às inquietações aqui manifestas.
Eis o caso. O serviço de orientação educacional ofereceu ao grupo de professores um desafio aparentemente simples: bastava ligar os pontos das três figuras oferecidas, com linhas retas, sem levantar a caneta do papel ou passar novamente sobre uma linha já traçada. Na primeira figura, só poderiam ser traçadas 4 linhas, na segunda 5 linhas e na terceira 6 linhas. Diante da instrução, entre a aparente simplicidade e a absoluta impossibilidade, as opiniões dos professores divergiram. As figuras eram como as que seguem:
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Após alguns instantes fitando o papel, os professores passaram a questionar tanto a instrução, quanto a atividade e, conseqüentemente, a possibilidade de resposta. Nitidamente a aflição tornou-se visível e os mais afoitos logo abandonaram a proposta para conversar sobre algum assunto, subitamente tomado como mais importante. Uma grande barreira tinha sido criada e não se vislumbrava uma maneira plausível de traçar o número de linhas indicado sem deixar um ponto de fora.
Naquela situação, a angústia dos professores em compreender porque sentiam tanta dificuldade em encontrar a solução superava a ânsia pela resposta. Não parecia muito razoável que todos os presentes, habilitados em áreas distintas e com tempo diverso de atuação e experiência, sentissem os mesmos empecilhos.  
Era nítido que o fator tempo tornara-se também uma alavanca para a angústia e a ansiedade, haja vista que ele passava e a resposta não vinha. Vale lembrar que grande parte dos presentes naquela ocasião não dispensou mais do que quatro ou cinco minutos firme no propósito de responder a questão. É inegável que o imperativo da não perda de tempo, refletido em discursos e práticas, influenciou decisivamente na desistência (afinal, por que pensar, refletir, analisar,..., se é mais fácil e rápido esperar a resposta pronta a ser dada no final?..)
Assim, as tentativas se limitavam a traçar formas já convencionadas, uma, duas ou três vezes, decretando a impossibilidade em seguida. Considerando essa atitude, parecia certo que a grande dificuldade tinha se estabelecido pelo fato de todos estarem acostumados demais a seguir uma ordem fixa, a percorrer caminhos determinados, a corresponder a padrões que não podem ser desviados. De certa forma a própria estrutura uniforme das figuras contribuiu para o enrijecimento do pensamento que levou a busca pela solução apenas nos limites da obviedade, do senso comum. É provável que isso tenha ocorrido porque, via de regra, é habitual o trabalho na ordem do provável, o que limitou a imaginar um traçado que já se parecesse, de alguma forma, com algo visto antes e cristalizado na memória - como um quadrado, um retângulo, losango,...
Ampliando um pouco a situação em pauta, pode-se retomar a clássica cena apresentada no início da obra “O Pequeno Príncipe”, de Saint Exupéry[9]: o narrador, ainda criança, mostrava desenhos de jibóias digerindo elefantes e as pessoas adultas apenas viam em suas representações chapéus mal desenhados - motivo pelo qual ele era sempre aconselhado a se preocupar com coisas de maior importância, tais como gramática, geografia, matemática.
Ora, essa cena faz alusão aos automatismos e ao olhar mecânico que só vê o óbvio, pois a fixidez do pensamento contribui para que o senso comum e os pré-conceitos sejam parâmetros para as respostas, atitudes, leituras, análises. É por força da ideologia que se admite o sentido como constructo natural, quando em verdade ele é determinado pela materialidade lingüística e histórica. É Orlandi quem adverte: "Não há relação direta entre mundo e linguagem, entre palavra e coisa. A relação não é direta, mas funciona como se fosse, por causa do imaginário."[10]
Na dimensão do imaginário o discurso remete diretamente à realidade, criando uma ilusão referencial. Ou seja, os pré-supostos e pré-conceitos, oriundos de uma determinação histórica, se mantém como se tivessem origem em inquestionáveis "valores naturais". Daí que é natural buscar re-afirmar o conhecido, num movimento continuamente cíclico e, no caso em tela, buscar formas já conhecidas e consideradas como normais, ou corretas.
 Na falta de uma resposta evidente e imediata, entende-se que o poder de resolução cabe às pessoas autorizadas (as mais instruídas, as que ocupam níveis superiores na hierarquia,...) - as condutoras da verdade a ser revelada e mantida. Nesse contexto, buscar respostas fora dos padrões equivale a arriscar-se a desautorizar o saber – e essa é uma atitude a ser evitada por aqueles que, mesmo professores, assumem a condição momentânea de alunos ou aprendizes (papel de não-saber).
Entende-se que a manutenção desse imaginário é fundamental para a manutenção da "ordem", e que esse processo não é consciente nem inteligível aos participantes, os quais apenas operam aquilo que lhes é imputado “naturalmente” a fazer. Pode-se supor que se a essência dessas relações transparecesse como um trabalho humano em que saberes e poderes se confrontam, seria a diáspora.
A propósito disso vale lembrar Eagleton[11] que comenta os estudos de Habermas sobre a noção de ideologia: 
as instituições dominantes (...) enrijecem a vida humana em um compulsivo de normas e, assim, bloqueiam o caminho da auto reflexão crítica. (...) tornamo-nos dependentes de poderes hipostasiados, sujeitos a restrições que, na verdade, são culturais, mas que nos influenciam com toda a inexorabilidade das forças naturais. Os instintos de satisfação que tais instituições frustam são impelidos subterraneamente, no fenômeno que Freud denomina "recalcamento", ou sublimados como visões de mundo
metafísicas, sistemas de valores ideais de um tipo ou de outro, que ajudam a consolar  e a compensar os indivíduos pelas restrições da vida real que deve suportar. Esses sistemas de valores servem assim para legitimar a ordem social.[12]

Dessa forma, pode-se conceber que a essência do processo de sujeição dos seres que vivenciaram tal situação - e que, como todos os outros, atuam em variados papéis no cotidiano – reside na transformação da história em natureza. Ou seja, o fato da "tradição" adquirir um estatuto natural promove um esvaziamento da perspectiva da história, enquanto toda uma nova "história" é produzida sob o efeito da homogeneidade (que não permite que se descubra o discurso-outro, presente por sua ausência necessária).
Nessa linha de raciocínio, vale registrar que todo esquecimento ocorre em função de interesses, porque a heterogeneidade não pode aparecer. Souza comenta que o processo de esquecimento é típico da estereotipia:
Vale dizer que o dispositivo do estereótipo enquanto discurso é tanto memória quanto esquecimento, no processo de cristalização de dados efeitos de sentido e recalcamento de outros. Nisso consiste a produtividade da estereotipia: ela interdita a pluralidade das identidades com seus parâmetros heteróclitos de valores.[13]
É como efeito da interdição que as imagens estereotipadas de professor, aluno, supervisor, coordenador, diretor, entre outras, correspondem sempre a uma única possibilidade de ser sujeito, de sorte que é preciso esquecer todas as outras vias de constituição e manter sempre atuais os discursos de fixação de procedimentos, conteúdos, comportamentos, padrões. É por isso que a atitude investigativa ou de criação - tomada por aquele que se arrisca a buscar uma forma diferente de analisar o fenômeno - é vista até com incredulidade pela massa habituada ao pensamento pré-determinado.
Isso não ocorre aleatoriamente ou só na instância educacional. A história é rica em exemplos de sujeitos que foram excluídos e reprimidos por desafiarem a visão consensual de determinados períodos. Registre-se o caso de Galileu que, valendo-se da teoria heliocêntrica de Copérnico, concluiu que o centro planetário não era a Terra, mas o sol, em torno do qual giravam todos os planetas. Uma percepção que mudava não só a ordem planetária, mas, principalmente, a ordem religiosa e de poder que concentrava na perspectiva geocêntrica todo um aparato de governamentalidade.
Ao propor o modelo heliocêntrico, Copérnico teve que se apresentar ao tribunal do Santo Ofício que o desencorajou de prosseguir a usar tal teoria, exceto em seus estudos matemáticos. Embora tenha sido pressionado, não se intimidou de todo, prosseguiu suas pesquisas e provou que objetos de qualquer peso caem com a mesma velocidade. Mas possivelmente sua maior contribuição tenha sido a instauração do questionamento do princípio, até então aceito como natural, de que o homem (imagem e semelhança de Deus) seria o centro do universo – e por isso os corpos celestes gravitariam em torno da Terra.
É certo que todo movimento de resistência equivale a um somar-se ao fluxo, ou seja, liberta-se de umas formas para sujeitar-se a outras. O deslocamento do centro de análise não atinge a todos igualmente e mesmo aqueles que são afetados por esse processo acabam por submeter-se a uma nova ordem, com um novo centro e novas determinações. Apesar da contribuição de Copérnico, é evidente que a grande maioria das pessoas não só mantém o homem no centro, como também presta culto a um tipo de homem eleito como o ideal, como o representante legítimo da espécie e das condutas consideradas aceitáveis. Essa visão etnocêntrica acaba por reforçar os processos de dominação e exploração, sublimados pela massa e tomados como naturais, de sorte que tudo que foge ao estereótipo ou é objeto de escárnio, ou de fetiche.
É possível deduzir que o enrijecimento do pensamento seja conseqüência direta da presença constante de modelos estereotipados os quais sustentam uma representação da alteridade em que as questões raciais, culturais e históricas são postas à margem das discussões sobre a contradição ou a diferença. Bhabha (1998) considera que o discurso colonial (como aparato de poder) cria um espaço para povos sujeitos e se apóia no reconhecimento e repúdio da diferença, produzindo o colonizado como uma realidade social sempre apreensível e visível. Dessa forma, todo um sistema de valores é criado para vigiar e controlar os sujeitos, que se submetem livremente aos significantes ideológicos. Pode-se dizer que esse sistema representa o que Bhabha (1998) classifica como "uma forma de governamentalidade que, ao delimitar uma "nação sujeita", apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade."[14]
Bhabha reconhece que o discurso racista estereotípico inscreve uma forma de governamentalidade que se baseia em uma cisão produtiva em sua constituição do saber e do exercício do poder. A população colonizada é tomada como a causa e o efeito do sistema. Deduz, ainda, que o poder colonial se justifica como uma forma de governamentalidade em que o espaço ideológico funciona de maneira mais conveniente com as exigências políticas e econômicas.
Pensando no contexto dos discursos e instituições educacionais, deve-se considerar que a escola está sempre perto de outras instituições reguladoras da sociedade, fazendo-se sempre visível e controlando as relações entre indivíduos. Isto evidencia que constantemente e desde seu nascimento e inserção numa comunidade o indivíduo é chamado a assumir um papel dentro da estrutura social, sendo nela vigiado pelas instituições que disseminam e naturalizam o poder.
Dessa forma, é que o professor, como todos os outros indivíduos, resulta de um processo de estereotipia, ao mesmo tempo em que se faz condutor desse processo, disseminando formas igualmente estereotipadas. Isso ocorre porque o professor é um indivíduo que foi interpelado a ser sujeito, pela ideologia, e determinado a ter uma forma individual, pelo Estado, do sido estruturado "de fora, pelo viés dos processos discursivos responsáveis pelo efeito de sustentação e o efeito de pré construído. Estes contribuem, pelo mecanismo ideológico do reconhecimento e da identificação, para descentrar a determinação, colocando-a fora do sujeito."[15]
Assim, interpelado e determinado, o professor é convocado a atuar de maneira adequada, a ocupar uma posição nas relações sociais e a se submeter livremente às ordens do Sujeito (significantes ideológicos). Vivendo imerso no imaginário da educação e dono de uma identidade de professor, ele fala na ilusão de que é o produtor do que diz e de que é quem dá significância às palavras. Ele vê esse processo como natural, inconsciente das vozes interdiscursivas que falam pela memória do dizer e assim ele simula (inconscientemente) que as palavras que ele diz são suas e que elas são unívocas, claras, transparentes e evidentes.
É a ideologia que produz o efeito de evidência, e da unidade, sustentando sobre o já dito os sentidos institucionalizados, admitidos como "naturais". Há uma parte do dizer, inacessível ao sujeito, e que fala em sua fala. Mais ainda: o sujeito toma como suas as palavras da voz anônima produzida pelo interdiscurso (a memória discursiva). (...) A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária entre linguagem e mundo.[16]
A evidência do sujeito é ideológica - é evidente que eu diga "eu" quando falo de mim mesmo - e oculta o processo de interpelação do sujeito. É a determinação discursiva - enquanto efeito de sentido onde intervêm fatores sintático-semânticos e ideológicos - que promove a emergência de marcas "da expressão da vontade e da liberdade do sujeito"[17] e faz com que o sujeito se encha da ilusão necessária que fundamenta a prática discursiva. Ou seja, o sujeito do discurso esquece que não é fonte de seu dizer (esquecimento n.º 1) e que as palavras que ele diz não são suas (esquecimento n.º 2), e isso lhe é necessário. São os determinantes discursivos que promovem a identificação do dito com a formação discursiva (FD) que afeta o sujeito do discurso.
Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (...) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito. (Pêcheux, 1997, p.163)
            Nesse emaranhado de estereótipos, sujeições, determinações, papéis,..., pode-se perguntar: como fica a verdade? Ela não existe? Antes de responder a esse questionamento, vale registrar que o discurso pedagógico possui as características do discurso autoritário, que tende a reversibilidade zero, não permite questionamentos e permite a existência de apenas um agente do discurso, visto que a relação com a referência é exclusiva do locutor. Assim, o texto configura-se num monólogo, já que é centrado na figura do enunciador, que carrega verdades inquestionáveis. Orlandi é quem define o discurso autoritário como “aquele em que a reversibilidade tende a zero, estando o objeto do discurso oculto pelo dizer, havendo um agente exclusivo do discurso e a polissemia contida.” [18]          
Os discursos que circulam no âmbito da escola e são reproduzidos pelos mesmos sujeitos que se constituem deles são autoritários porque propõem uma série de atitudes, modos de ação que devem ser rigidamente seguidos, sem contestação. São discursos sempre ideológicos: há posições certas e definidas que permitem ao enunciador fazer e dizer coisas autoritárias. Para fazer uso dele, é preciso estar no lugar certo, em pleno exercício do poder –  todo professor ocupa um lugar privilegiado na hierarquia de posições na escola, pois possui a experiência de vida que lhe autoriza a falar a verdade e a legitimação da sociedade e da instituição escolar. Em suma, no discurso autoritário há um só agente, o interlocutor é passivo, comandado, a verdade é imposta.
            Mas não parece ser essa a verdade que foi questionada anteriormente. Para tratar daquela verdade que parece o foco do questionamento, é importante buscar as considerações de Foucault que, além de se distanciar da verdade como imposição ou autoritarismo, faz considerações interessantes sobre a função da verdade na construção do sujeito. O autor, ao pesquisar os modos instituídos do conhecimento de si e sua história  estudou aquilo que na cultura helênica e romana se desenvolveu como “técnica de vida”, “técnica de existência”, aplicada aos atos que os gregos chamavam aphrodisia, constatou que o ocupar-se de si era mais que uma simples preparação para a vida, era mesmo uma forma de vida. Ao ser considerada uma prática que deve ser exercida por toda a vida, o cuidado de si diluiu-se na prática pedagógica e afirmou-se em outras funções que deveriam ser apreciadas no curso da vida, quais sejam:
1.    Função crítica: o cuidado de si deve permitir a eliminação dos maus hábitos e das falsas opiniões;
2.    Função de luta: a prática de si deve instrumentalizar os indivíduos para a vida, para os combates que a vida impõe;
3.    Função curativa: as técnicas do cuidado de si estão relacionadas à cura das doenças do corpo e da alma.
            Na antiguidade clássica o conhecimento de si era sempre permeado pelas relações com um mestre, um diretor, um conselheiro, isto é, sempre apoiada na figura do outro. Este princípio tinha como pressuposto que não era possível ocupar-se de si mesmo sem a ajuda de um outro. Para viver de acordo com a cultura de si, o indivíduo adotava um conjunto de práticas que o capacitava a enfrentar a vida. Essa prática ensinava exclusivamente aquilo que permitisse ao indivíduo o domínio dos acontecimentos, no sentido de fortalecer o espírito para não se deixar levar nem perturbar pelos episódios futuros. À pergunta: o que é necessário para enfrentar a vida? Foucault responde:
Precisamos de discurso: de logoï, entendidos como discursos verdadeiros e discursos racionais... o equipamento de que precisamos para fazer face ao futuro é um equipamento de discursos verdadeiros. São eles que nos permitem afrontar o real. (p.127)
            Os discursos verdadeiros, segundo a leitura de Foucault, devem estar a disposição do sujeito quando este precisar fazer uso deles para se proteger dos acontecimentos imprevistos. Tomando a verdade como exterior ao sujeito – a absorção de uma verdade é dada por um ensinamento, leitura, conselho, o ideal platônico é afastado, pois não é mais a alma que se voltando sobre si mesma reencontra a verdade. Ao invés disso, a verdade é assimilada até que se torne parte de si mesmo. E com isto Foucault chama a atenção para a diferença que existe entre descobrir uma verdade no sujeito e armar o sujeito de uma verdade que ele não conhecia. No primeiro caso, é possível imaginar que o sujeito é depositário da verdade; e com isto fazer do sujeito o próprio objeto do discurso verdadeiro, o que, segundo o autor, não é correto. No segundo caso, a verdade não reside no sujeito e este se apropria dela progressivamente de forma a aplicá-la segundo as circunstâncias. Assim, o discurso verdadeiro “torna-se um quase-sujeito que reina em nós mesmos.” (p.130)
            Foucault em entrevista a Dreyfus afirma que sua volta aos gregos não tem por objetivo encontrar uma solução distante historicamente para os problemas atuais e esclarece que o mundo antigo não foi a idade de ouro. Entretanto, Deus, as instituições sociais e a própria lei pareciam ter pouca valia para a ética grega que tinha como preocupação central constituir-se num tipo de ética que fosse uma estética da existência.[19]
            Embora a austeridade grega tenha sido absorvida pelo cristianismo medieval, este último introduz o problema da pureza, efetuando a seguinte mudança: o problema da purificação toma o espaço no campo da ética que era destinado à estética da existência. Com o cristianismo surgem novas práticas e diferentes formas de  sujeição e do cultivo de si.
            De uma forma ou de outra, nossa sociedade atual continua a estabelecer formas do cuidado de si, maneiras de cuidar do corpo e/ou da alma, técnicas de vida. Tais regras, explicitadas via pedagogia, preenchem as três funções do cuidado de si: função crítica, de luta e curativa. Os conteúdos postulados pela escola constituem uma verdade que o indivíduo deve assimilar para enfrentar a vida e são repassados por um mestre. Ou seja, como na antiguidade, o conhecimento de si baseia-se no outro.
            Entretanto, o sujeito professor, ao ser afetado pela ideologia passa a reproduzir inconscientemente discursos que correspondem a uma formação ideológica a que ele se submete livremente. Nesse sentido, a verdade pré-fabricada, estereotipada, maquiada de conhecimento e autoridade se impõem, impedindo que os sentidos circulem e que se possa discernir qual é a verdade e qual a sua função. Assim é que o discurso pedagógico usado pelo professor possui características evidentemente estereotipadas - já conhecidas, necessitam ser repetidas incansavelmente.
            E aqui voltamos ao princípio. Por que a solução daquele exercício proposto pareceu impossível a maioria? Porque a mente está fechada, presa a estereótipos que determinam de antemão o certo e o errado, o bom e o ruim, o aceitável e o inaceitável, tomando como referência um sistema pré-fixado de valores. Com isto, não há espaço para a afirmação de outros lugares de sujeito e nem para a percepção da legítima verdade. Essa configuração estereotipada promove a ilusão de unicidade subjetiva do sujeito professor que se constitui e se mostrar como UM, sem experimentar conflitos com outras instâncias de subjetividade. Tal sujeito apresenta-se de forma demasiadamente centrada, o que gera uma ilusão de autonomia, causando a impressão de que o sujeito em questão não precisa de nada, nem de ninguém.
A ânsia do aparato ideológico-discursivo que circunda o professor em definir a posição de sujeito-professor age como uma força repetitiva, que faz com que ele retorne sempre pelo mesmo caminho, construindo estruturas fixas que permitem vastas, mas sempre, combinações. Essa força repetitiva trabalha o processo de enunciação, sendo que as sucessivas determinações que ele sofre transparecem na formalização do que é dito e feito – manifestando a identificação do dito com a formação discursiva que o afetou enquanto sujeito do discurso.
Mas a determinação não é totalizadora. Há sempre um jogo conflitivo entre imagem estereotipada e outras posições de sujeito que irrompem pelo deslize, de forma que é freqüente visualizar um sujeito que desponta no mesmo lugar em que se esconde, ou seja, na ilusão de ser evidente. É esse jogo ambíguo do sujeito que se quer um, completo, cônscio, mas deixa-se deslizar na falha, na incompletude, na falta, que pode promover a mudança em educação. Uma mudança que precisa começar pelo próprio professor enquanto sujeito. Um sujeito que precisa encontrar brechas para fazer a operação de transgressão e ruptura pela crítica, que, segundo Foucault, apresenta um núcleo originário relacionado ao
feixe de relações em que se tecem os problemas do poder, da verdade e do sujeito (...) a crítica designa o movimento através do qual o sujeito reconhece ter o direito de interrogar a verdade nos seus efeitos de poder e o poder nos seus discursos de verdade; a crítica será, portanto, a arte da desobediência voluntária, da indocilidade raciocinada. Função fundamental da crítica seria, por isso, o des-subjugamento (des-sujeitamento) no jogo que se poderia denominar a política da verdade.[20]
Se for possível esperar a crítica por parte dos professores, então será possível esperar que a educação projetada no documento da UNESCO enfim saia do papel. No dia em que a transgressão ao sistema de valores e de verdades ocorrer, será possível aprender a conhecer, a fazer, a viver e, principalmente, a ser.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCAULT, Michel. Iluminismo e crítica. (Debate na Société Française de Philosophie, Paris, maio de 1978) Trad. Port. Selvino Assmann. Texto mimeo. Subsídio de estudo.
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SILVA, Elzamir G & TUNES, Elizabeth. Abolindo mocinhos e bandidos. O professor o ensinar e o aprender. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1999.
SILVA, Geysa. Lendo e seduzindo, ou o enfrentamento literário. In: FREITAS, Maria Teresa e COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita na formação de professores. Juiz de Fora: UFJF, 2002



* Mestre em Lingüística pela UFSC/SC e professora da UNIR – Porto Velho/RO
[1] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Ed. Escala.
[2] Frase presente em poema de Fernando Pessoa intitulado “Navegar é preciso”. A frase aparece entre aspas no poema, pois é a reprodução em português da frase latina: "Navigare necesse; vivere non est necesse" – proferida por Pompeu, general romano que viveu entre 106-48 aC. Essa frase era dita aos marinheiros quando estes, temerosos, se recusavam a viajar durante a guerra (cf ).
[3]SILVA, Geysa. Lendo e seduzindo, ou o enfrentamento literário. In: FREITAS, Maria Teresa e COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita na formação de professores. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p. 65
[4] Idem, p. 65
[5] CARROL, Lewis. Alice no país das maravilhas. São Paulo: Ática, 1997. Tradução de Ana Maria Machado
[6] SILVA, Elzamir G & TUNES, Elizabeth. Abolindo mocinhos e bandidos. O professor o ensinar e o aprender. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1999.
[7] DELORS, Jacques et alli. Educação: um tesouro a descobrir. Cortez Editora, São Paulo, MEC: UNESCO: Brasília, DF, 1998
[8] LISPECTOR, Clarice.  A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 9. ed. 1984.
[9] SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir Editora. 26. ed. 1983.
[10] ORLANDI, Eni Pulcinelli. Interpretação e autoria: leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p.32
[11] EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: editorial Boitempo e editora da UNESP, 1997.
[12] EAGLETON, Terry. Ideologia. SP: editorial Boitempo e editora da Unesp.1997, p. 121
[13] SOUZA, Pedro de."As enquetes como discurso: um caso de acesso às palavras do racismo". In: INDURSKY, F. Múltiplos territórios da análise do discurso. POA: Sagra-Luzalto, 1999, p. 256.
[14] Idem, p. 111
[15]  HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992, p.200.
[16] ORLANDI, Eni Pulcinelli. Interpretação. RJ: ed. Vozes, 1996, p. 36.
[17] HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 117
[18] ORLANDI, Eni Pulcinelli. (org) Discurso fundador. Campinas, SP: Pontes Editores, 1993, p. 154.
[19] RABINOW & DREYFUS. Uma trajetória filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica. RJ: Forense Universitária, 1995, p. 255
[20] FOUCAULT, Michel. Iluminismo e crítica. (Debate na Société Française de Philosophie, Paris, maio de 1978) Trad. Port. Selvino Assmann. Texto mimeo. Subsídio de estudo.

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